Ginecologia natural: um caminho para a humanização do cuidado
Laila Nery, Glenda Dantas e Mariana Gomes – 10 de junho de 2019
Conheça a proposta da ginecologia natural e como ela se integra na garantia da saúde sexual e reprodutiva de mulheres plurais
Por Laila Nery, Glenda Dantas e Mariana Gomes
Hoje a América Latina é palco de uma transformação nos cuidados ginecológicos através da ginecologia natural. Essa prática propõe tratamentos naturais (fitoterapia, aromaterapia, mudança na alimentação) para a saúde ginecológica a partir do autoconhecimento e da autonomia do indivíduo. Para isso, reverencia saberes de atenção e cuidado de rezadeiras, benzedeiras e de comunidades tradicionais, construindo um caminho de humanização da saúde.
“A Ginecologia Natural não é uma formação médica e não se trata de especialização. É uma formação livre dentro das terapias que visam o indivíduo como um todo, portanto holísticas”, explica Emilene Silva, Fisioterapeuta na Saúde da Mulher. Ela, que cresceu em contato com o poder curativo das ervas em práticas domésticas, conta que sua formação técnica na área se deu através de estudos por livros e publicações, e participando de cursos formativos.
A utilização de ervas, banhos de assento, conhecimentos ancestrais, obtidos através de séculos de pesquisa, já levaram milhares de “bruxas” para a fogueira. Para Bel Saide, ginecologista especializada nesse ramo e referência no Brasil, a ginecologia natural é a “novidade” mais velha de todos os tempos. Compreender o ciclo menstrual, o aparelho reprodutor feminino e a vagina têm se tornado assuntos cada vez mais frequentes nas rodas de conversa.
Ela conta que conheceu a ginecologia natural através de estudos milenares, oriundos de povos Latino-americanos. “A ginecologia natural resgata conhecimentos tradicionais das mulheres em seus cuidados íntimos, e vê com amorosidade as questões femininas e suas nuances, convidando ao profundo autoconhecimento e conexão com seus corpos, que levam à autonomia, transformação e libertação. Ao mesmo tempo que é individual, é coletivo, estimula o contato, o carinho, a troca, o apoio mútuo entre as mulheres. Nos leva à natureza, ao natural, à essência de ser mulher. É novo e é antigo, é complexo e maravilhosamente simples!”, conta a médica.
O desconforto com métodos tradicionais de contracepção, exames ginecológicos, TPM e a busca pelo bem estar feminino são os principais motivadores das busca pelos métodos alternativos. A médica defende a que os conhecimentos das duas ginecologias (medicina tradicional e natural) devem ser aliadas e complementares, tudo em prol do bem-estar feminino.
A construção da ginecologia natural
A visão restrita da medicina sobre os corpos das mulheres fez com que, na década de 1970, mulheres ao redor do mundo começassem a reivindicar ser compreendidas além do papel reprodução. A partir daí a anticoncepção, o aborto e o respeito às diversas orientações sexuais passaram a ser pauta e se consolidaram no final do século XX como os direitos sexuais e reprodutivos.
“Felizmente tem-se resgatado aos poucos algo que nos foi tirado ao longo de séculos que é a busca pelo corpo sábio, a busca pelo protagonismo e poder de escolha à opção de não se permitir a nenhuma intervenção desnecessária e agressiva”, defende Emilene.
A procura por atendimentos médicos mais humanizados têm sido crescente, mas a Fisioterapeuta alerta: “De nada vale acreditar no poder curativo de uma erva como solução mágica se não estivermos conectadas com o nosso processo, buscando chegar à raiz do que nos fez adoecer”.
Liliana Pogliani, obstetra argentina e uma das principais referências no mundo quando se trata do assunto, defende a utilização da ginecologia natural para mulheres grávidas em seu blog. Ela acredita que muitos métodos tradicionais não deveriam ter deixado de ser repassados de mãe para filha. Como é o caso da utilização dos fármacos a base do tecido da placenta, “remédios baseados em tecido placentário têm sido utilizados em toda a história da humanidade. A placenta humana é o órgão intermediário entre a mãe e o embrião durante toda a gravidez. Por isso, contém informações valiosas. Esses remédios ajudam a produzir mais leite e a curar, a manter o sistema hormonal equilibrado”, conta a obstetra e ginecologista natural.
Cuidado e autonomia para todas!
Em vias de garantir a saúde sexual e reprodutiva, os cuidados ginecológicos também se adequam cada vez mais às vidas das pessoas considerando a diversidade de orientação sexual e identidade de gênero. Mulheres que se relacionam com outras mulheres, como no caso das lésbicas e bissexuais, não compartilham das mesmas preocupações daquelas que se relacionam com homens.
Segundo Thárcia Purificação, graduada em Saúde Coletiva e integrante do Coletivo Brejo – grupo de mulheres lésbicas e bissexuais majoritariamente negras na cidade Salvador (BA) – a ginecologia também pode ser política ao permitir que o cuidado com o corpo não esteja preso a padrões heteronormativos. “Pensar na saúde sexual e reprodutiva LGBT é pensar como estamos inseridas e inseridos em um projeto de sociedade racista que ao desumanizar nossos corpos reduz a saúde da mulher a saúde reprodutora para o controle dos nossos corpos”, afirma a pesquisadora e ativista.
Recorrendo a ginecologia natural Júlia Morais, que também é uma mulher lésbica, informa que seu autocuidado se transformou na medida em que percebeu a desassistência do SUS à mulheres que se relacionam com outras mulheres. “Nós não temos métodos contraceptivos específicos, não temos um sistema de saúde que cuida da gente. Estamos jogadas a nossa própria sorte e para se cuidar o primeiro passo é a higiene, lavar bem as mãos, cortar as unhas e conhecer bem o corpo em relação às DST’s”, conta. Além disso, junto com sua mãe, ela cria produtos para as mulheres que estão criando novos hábitos. Além de ser fonte de renda, ela aciona uma rede de mulheres que trocam informações e oferece produtos sustentáveis.
No Brasil, desde 2013 existe a Política Nacional de Saúde Integral Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, entretanto a lgbtfobia e a falta de capacitação dificulta sua implementação. “Muitas vezes me vi em uma situação mecânica de atendimento e uma falta de cuidado e preocupação sobre a minha vivência e meus relacionamentos enquanto uma mulher que se relaciona com outra mulher. Quando dialogamos entre nós [no coletivo] sempre há relatos como não ir mais ao ginecologista pela conduta do mesmo e desta maneira acabamos buscando sempre alternativas que nos levam a uma maior autonomia dos nossos corpos”, compartilha Purificação.
Thárcia também tem iniciado sua jornada pessoal na ginecologia natural e avalia que o contato com práticas ancestrais de cuidado permitem alcançar as dimensões física, mental e espiritual da saúde. “Tenho iniciado minha caminhada no entendimento da ginecologia natural enquanto uma ferramenta importante a ser resgatada para o fortalecimento entre as nossas. Nós do coletivo brejo entendemos a importância desse mergulho no nosso íntimo e interior e o quanto isto também diz de uma reconexão ancestral”.
Pessoas trans também têm uma vivência que tensiona as práticas convencionais da ginecologia, e a alternativa natural surge como possibilidade de criação de autonomia. “Em espaços ativistas, particularmente entre homens trans e pessoas transmasculinas, já me informei sobre a ginecologia natural. Ao meu ver, são importantes trocas no sentido de deslocar os conhecimentos centrados no corporativismo médico-farmacêutico”, explica Viviane Vergueiro, mulher trans e pesquisadora sobre transgenereidade.
Já no caso de mulheres como ela, nem todas recorrem aos serviços ginecológicos convencionais, mas quando o fazem buscam práticas que compreendam suas especificidades. “Não tentei acessar a ginecologia, no geral, por ser uma mulher trans. No entanto, desde o final do ano passado tenho me consultado com uma ginecologista de um serviço de saúde público daqui de Salvador. Essa profissional tem sido importante no acompanhamento geral de minhas condições de saúde (a clínica geral é um contexto que, aí sim, tive dificuldades em acessar e confiar), bem como de orientações e diálogos específicos sobre questões relacionadas à identidade de gênero (questões trans)”, revela Vergueiro.
Ainda segundo a pesquisadora, dialogar e transformar estereótipos e estigmas sobre a saúde de pessoas LGBT é fundamental para garantir os direitos sexuais e reprodutivos delas. “Despatologizar as orientações sexuais e as identidades de gênero, por exemplo, tem a ver com a possibilidade dos direitos sexuais e reprodutivos de pessoas LGBT serem ampliados no sentido da autonomia e de não vivermos em um mundo onde não ser cis ou hétero seja um problema, e especialmente para aquelas marginalizadas por sua classe, raça e gênero”.
Por onde começar
“Uma vez que a ginecologia natural te coloca em contato com a sabedoria que reside em seu corpo e te reeduca a escutar quem é você entre o meio que te cerca, ela favorece a prática do autorrespeito”, afirma Emilene. Tem interesse em se aprofundar nos conhecimentos da ginecologia natural?