“A Calatonia e o arquétipo da Madona Negra” – Lucy Penna
Lucy Penna
Núcleo Junguiano do Cerrado
ABSTRACT
O arquétipo da Madona Negra permanece vivo e atuante no terceiro milênio. Seu significado é forte em inúmeras manifestações famosas: Pele, Czestochowa, Einsiedeln, Guadalupe, Monteserrat, Maria Madalena e Aparecida, exemplos da força desse arquétipo na transição do processo de individuação coletivo. Este ensaio contribui para vincular os conteúdos constelados pela Madona Negra de Aparecida e o método calatônico de Pethö Sandor . Proponho que a peculiar interação entre o corpo físico e o corpo sutil que caracteriza a Calatonia faz parte da manifestação do arquétipo da Madona Negra de Aparecida.
Palavras-Chave
MADONA NEGRA – SELF CULTURAL – MITOS BRASILEIROS – NOSSA SENHORA APARECIDA – CALATONIA – TOQUES SUTIS.
O arquétipo da Madona Negra continua instigando a nossa compreensão pela complexidade do seu conteúdo e pela continuidade de suas manifestações desde o mundo antigo. Pele do Havai é uma das manifestações mais populares deste arquétipo que vence os milênios, derrota a cultura racionalista americana e permanece uma expressão viva da Madona Negra. No contexto cristão atual temos a polonesa Nossa Senhora de Czestochowa, a espanhola Virgem de Montserrat, a Virgem Negra de Einsiedeln, Suiça, a mexicana Nossa Senhora de Guadalupe. Sara, a protetora dos ciganos e Maria Madalena, erguem-se como frutos de um sincretismo onde os mistérios do ocultismo se misturam com a fé cristã, no sul da França. O Brasil é pródigo de imagens da Madona Negra: Nossa Senhora da Conceição Aparecida e Nossa Senhora de Nazaré, e também Yemanjá e Oxum são as representantes mais populares do arquétipo.
As Madonas Negras constelam a consciência da interconexão com todos os seres humanos e não humanos. Inspiram o sentimento de pertencer ao todo universal que libera a compaixão para com o mundo. Elas unem o corpo e a mente, comunicam o humano e o divino, apaziguam o conflito entre matéria e espírito. É um traço forte neste arquétipo em seu aspecto positivo tornar a profissão espiritualizada, a vida social um ato de fé, a cidadania uma atitude ética normal. Percebo uma relação intrínseca da Calatonia com o arquétipo da madona Negra na maneira como o corpo dança com a mente e o espírito se amiga com a matéria.
A Calatonia torna palpável o humano e o divino no corpo. Ela toca o sensível e o sensual, libera a sensibilidade e abre o imaginário. Os toques calatônicos são uma manifestação de superação dos opostos terapeuta – paciente. Durante o processo dos toques ambos estão se deslocando nos espaços internos, onde as vozes dos diferentes níveis de consciência antes banidas, esquecidas ou reprimidas, podem ser ouvidas. E atendidas.
Abrir para o Sagrado Feminino
Uma moça casada de 33 anos, psicóloga, sonhou que recebia a notícia da morte de sua mãe. O tema da doença ou perda da mãe se repete desde alguns meses, abordando o eixo simbólico do Sagrado feminino sob vários ângulos. Já elaboramos o seu medo de perder a mãe e também a necessidade de diferenciar-se do modelo feminino materno e familiar. Na última sessão, fizemos toques na cabeça e no rosto. Ela entrou em profundo estado de introspecção. Então, pedi que voltasse ao sonho e materializasse a causa da morte de sua mãe. “Descuido com ela mesma”, respondeu. Minha paciente é uma pessoa inteligente, que lê, faz cursos, trabalha como psicóloga e, aparentemente, cuida bem de si mesma. Qual o aspecto que está descuidado? Temos duas possíveis interpretações: ela ainda não quis ter filhos, embora seja casada há sete anos. E tem sido displicente com sua vida espiritual. Esses dois conteúdos estão interligados, pois ela comanda as escolhas pela razão que lhe diz “ainda não chegou a hora de se mãe”. Para ser mãe ela precisa aproximar-se do marido, criar um lar, pois ainda mora com os seus pais, e aceitar a tarefa da maternidade. Completando agora 38 anos, ela tem de ampliar a visão do seu poder feminino. A força do arquétipo é o germe de uma doação viva, sensível, amorosa que se tornaria a base de uma atitude espiritualizada diante dos processos naturais da vida feminina. Mas será que é o seu caminho? A Calatonia está abrindo sua visão para um corpo sagrado, ao mesmo tempo em que esclarece seu caminho de mulher. Durante os poucos minutos da Calatonia ela consegue ir além do confronto entre o medo de ser ela mesma plenamente e o medo de sair da proteção da mãe ( dos pais). Aos poucos esses instantes de luz interior poderão ir espalhando mais auto-confiança.
Pelo fato de tocarmos nos pacientes, nós induzimos uma aproximação entre o físico e o espiritual mais tangível do que em outros métodos. Terapeuta e paciente sentem a intensidade e a leveza da presença única do ser integral. A Calatonia permite a proximidade que está ausente na psicanálise e irrompe no proibido pelas normas técnicas ainda vigentes. Nosso trabalho inaugura uma aproximação de corpos carentes da água da vida. A Calatonia promove uma freqüência vibratória onde as consciências navegam na direção do Self. Cria um campo mórfico onde a telepatia é possível. Esse é o nível de atuação do arquétipo da Madona Negra em todas as épocas.
Fragmentos integrados do meu ser
No mito egípcio, Isis usou rezas e poções mágicas para restaurar o corpo despedaçado de seu marido, Osíris. Copulou com Osíris ressuscitado e gerou Hórus, o Sol Novo e Jovem. Símbolo da renovação cultural do Egito, Hórus reinou para iluminar e ensinar, até mesmo sua velha mãe, e até hoje ainda pode significar a luz da consciência superior. Talvez a mais antiga manifestação reconhecida da Madona Negra, os mistérios de Ísis e Osíris foram cultuados por cerca de 5 mil anos. Trazido do Egito para o continente europeu, seu culto perdurou sob formas veladas. A Catedral de Notre Dame, no centro de Paris, ergue-se hoje sobre um antiqüíssimo templo de Ísis. Com a mudança das crenças religiosas oficiais, Isis transformou-se em Santa Genoveva, a padroeira de Paris, a Cidade-Luz.
Quem somos nós, se não pajés e pajéias a juntar os fragmentos das pessoas (e os nossos) com os toques suaves aprendidos de Sandor? Nosso objetivo é restaurar o ser integral. Queremos a ressurreição gloriosa, com alegria de viver e mesa farta para todos. Chega de crucifixos pendentes sobre a cama do casal. Regendo sobre o corpo e sobre a espiritualidade, a Madona Negra estimula a viver a sexualidade com alma, criando e recriando laços de amor. As conexões criadas pelos toques calatônicos juntam os fragmentos disparatados, feios e custosos…mas totalmente nossos.
Os toques da calatonia ensinam a ser com os outros. Crianças aprendem a trocar carinhos, como os colegas tão bem ensinam e divulgam há anos. As escolas começam programas que são verdadeiros laboratórios de toques para a juventude. Pacientes internados recebem o carinho dos toques calatônicos em abrigos e hospitais. Pesquisas, trabalhos de campo e teses argumentam sobre o efeito desses contatos tão simples, profundos e instigantes. Cada segmento da sociedade que está sendo tocado reverbera o gesto humanizador da calatonia, irradiando o com-tato adiante com muitos outros.
Sandor iniciou uma revolução pacífica na sociedade brasileira. A sua presença e seu modo de agir levam a crer que o arquétipo da Madona Negra o inspirou e o protegeu a vida toda. Visto de outro modo, diria que ele foi atraído pela força da Madona Negra neste território. Aqui Yemanjá, uma deusa de um rio africano, transformou-se em senhora dos mares, cultuada de norte a sul. Tornou-se uma orixá, incorporada à Nossa Senhora da Conceição, que é da concepção, portanto da fertilidade e do amor. Unindo o sagrado e o profano, as tradições indígenas também somam imagens míticas do Sagrado Feminino que unificam o material e o espiritual. Lembremos que Sandor expandiu, divulgou e propôs seu método aqui. Para uma personalidade sensível como ele, o campo mórfico deste território seria, certamente, uma fonte de inspiradacriatividade.
Aparecida e a Calatonia
A proposta renovadora que a Calatonia traz aos relacionamentos integra-se aos símbolos constelados em Nossa Senhora Aparecida, o sinal mais importante da presença do arquétipo Madona Negra na psique coletiva brasileira. Aparecida veio decapitada e suja das águas do rio Paraíba. Quando rezar para uma santa escurinha era crime sujeito à pena de morte, ela emergiu quase preta. Uma santa feita possivelmente por um frade, com as cores de Maria, levando o símbolo das deusas pagãs da fertilidade na lua crescente sob os pés. Jogada ou perdida no rio Paraíba, transformou-se. Sofreu uma verdadeira alquimia nas águas lodosas do rio, perdeu as cores convencionais, emergiu como Madona Negra trazendo abundância de peixes para saciar o corpo e o espírito das gentes.
Aparecida é cor de canela como nosso povo. Ela expressa a deliciosa e confusa combinação do DNA neste chão. Aparecida também revela a profunda dualidade do nosso povo. Cabeça separada do corpo, razão se opondo ao sentimento, confusas realidades que estão na raiz da identidade nacional. Enquanto o prazer colore a sensualidade na cama e na mesa, a preguiça corrói o caráter. As questões públicas se pautam pela pragmática econômica excessiva que não chega a ser implementada. O governo é a cabeça, enquanto o povo é o corpo da nação. Tem-se a impressão de que não é possível elevar o patamar de prosperidade para todos enquanto governo e povo estiverem tão separados. Aparecida mostra os conflitos da alma que se forja há cinco séculos neste território. Por isto, ela não pertence a um grupo, a uma classe social, nem a uma igreja. Aparecida é do Brasil. Tanto quanto a Calatonia é um produto brasileiro, gestado no trato com as gentes que moram aqui, incubado no atendimento às pessoas daqui. A Calatonia é a cara da gente brasileira.
Quebrada, depois atacada e quase destruída, a imagem de Aparecida percorreu muitas etapas no caminho da integração cabeça/corpo. Quem primeiro juntou sua cabeça e corpo foi a cabocla Silvana, mãe de João Alves que a recolheu em sua rede de pesca em 1717. O maior ataque à integridade física da imagem a destruiu em 165 pedaços, em 1978. As mãos hábeis de Maria Helena Chartuni a agiram para recompor o corpo destruído, e a presença espiritual da Madona expandiu-se ainda mais. Sempre as mãos, sempre as mulheres. Dois aspectos da saga alquímica desta Madona Negra que a ligam ao toque calatônico com as mãos. Realmente os toques calatônicos devem ser realizados sempre com amorosidade e inclusividade, que são qualidades do Princípio Feminino, e estão presentes nos homens evoluídos e nas mulheres cuidadosas.
O que nos leva àquela paciente, que finalmente percebeu o quanto estava descuidada consigo mesma. A cabeça separada do seu corpo, da vida instintiva pulsando dentro dela pedindo para ser mulher inteira. Os significados que atribuímos aos contrários “cabeça – e – corpo” podem ser diferentes, mas olhar para eles e encontrar o caminho de conciliação é uma necessidade universal. Aparecida está ai mesmo, para lembrar-nos da urgência deste esforço. Ressuscitada, inteira, ela se transformou em símbolo do Self Cultural nacional. Sandor captou esse Self, trabalhou com ele e por ele.
Sandor viveu e se transformou neste país, uniu seus fragmentos. Aqui ele percorreu sua individuação com serena presença, diante de nós. Ao perceber as nossas necessidades, deixou uma maneira simples e intensa de atuar para construir um caráter íntegro nas pessoas. A carência da verdadeira integridade grita nos olhares das crianças de rua, espanta nos atingidos pelas balas perdidas, mata de fome nos banidos da sorte.
Uma relação mais sadia consigo mesmo, cuidando de si e dos outros, sem alarme, nem alardeando promessas vãs: esta é a herança de Sandor. Ela combina com os símbolos que vejo em Aparecida, a nossa Madona Negra da abundância. Abundância de amor, inclusão e perdão, por artes e sabedorias da Senhora Dona da Paixão. Aquela que dá o vinho e o pão, a cama e a mesa… no canto de Milton Nascimento. (*)
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(*) Louva-a-Deus – Canção de Milton Nascimento e Fernando Brant. Nascimento/Três Pontas/EMI Publishing Brazil ASCAP/UBC – 67059244