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Tradições Nativas da Amazonia

SEBASTIÃO SALGADO NA AMAZÔNIA

https://arte.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/sebastiao-salgado/yawanawa/projeto-amazonia-documenta-a-floresta-e-seus-habitantes-tradicionais/

Yawanawás Um olho na tradição da floresta, outro conectado ao mundo, a comunidade yawanawá, do Acre, vive seu renascimento cultural e é referência em empreendedorismo –após ter sido dizimada e perseguida nos anos 1970V

O índio yawanawá Miró, também conhecido como Viná, e seu adereço de cabeça adornado com bico de gavião-real

Primeiras pajés mulheres resgatam banhos curativos

Janete, da aldeia Escondido, que usa pulseira com desenhos geométricos feitos com miçangas e segura jijus pescados no rio

Duas mulheres fazem a fama dos yawanawás entre outros indígenas do mundo: as irmãs Putani e HushahuElas são as primeiras, na história de seu povo, a se tornarem pajés.

Tradicionalmente, só os homens eram iniciados no conhecimento profundo das tradições religiosas. No começo dos anos 2000, restavam apenas três pajés entre os yawanawás, todos já idosos: Raimundo Tuinkuru e os irmãos Yawa Runi e Tatá Txanu Natasheni.

Foi nessa época que as duas filhas de Tuinkuru o procuraram para dizer que queriam receber a formação de pajé. O pai imediatamente recusou, por uma questão de gênero. Não havia a memória de mulheres pajés entre seu povo.

Marizete, ao centro, com sua nora Alice, à esq., e sua filha Maria Adelaide, da Aldeia Nova Esperança

Depois de um tempo, as duas voltaram a insistir na ideia. Como argumento, elas diziam que nenhum homem havia sido iniciado e que todos os conhecimentos dos xamãs poderiam ser perdidos.

Putani conta que seu pai, então, preferiu que outro pajé decidisse. Tatá foi consultado e concluiu que não havia problemas.

“Mas, para provar que mulheres poderiam resistir às agruras da iniciação, os nossos sacrifícios deveriam ser ainda maiores”, continua Putani. “Meu pai disse ao Tatá: faça com elas o dobro do que faria com homens, para que ninguém duvide de que são corajosas.”

E assim, em 2004, as duas mulheres iniciaram a formação, que começa com um longo jejum. Por vários dias a pessoa só se alimenta com a batata de uma planta chamada mucá, considerada sagrada.

Quem está fazendo a iniciação para se tornar pajé fica acampado na floresta, longe da comunidade. Só pode ter a companhia de quem está preparando sua dieta.

Putani e Hushahu escolheram isolar-se no local onde seus antepassados viviam no tempo do contato com os primeiros seringueiros. É o lugar denominado Aldeia Sagrada. “Neste lugar está enterrado meu avô. Ele disse que, se a gente precisasse de sua ajuda, bastaria pedir”, conta.

Passados quase 15 anos daquela iniciação, o lugar agora está sendo preparado para receber uma nova comunidade. Os yawanawás vão voltar a ocupar o lugar de onde saíram no passado. À época, o local era uma área isolada na floresta.

“Nosso processo de conhecimento e cura é baseado em sonhos. Você sonha com as doenças que vai ter; o pajé sonha com as doenças que terá de curar nos outros. Por isso você precisa ficar isolado, ouvindo o silêncio. Não pode ouvir zoada. A ideia é que você ouça os passos das pessoas, o tom de sua voz. Tudo isso é revelador de como está a saúde delas, desde que você saiba ouvir os detalhes”, explica Raimunda Putani, seu nome completo.

A dieta evita carnes de animais associados a características consideradas inadequadas para um líder espiritual. “A anta é um bicho pesado. Por isso, quem está no mucá não pode comer sua carne, ela deixa a pessoa pesada. Já o macaco capelão é um bicho que canta, fará bem ao pajé. O jabuti, normalmente muito desejado, anda muito devagar, e sua carne deixa os pensamentos lentos. Já peixes e aves são rápidos”, explica Putani. Assim os alimentos são divididos entre os que podem ou não ser consumidos durante os vários meses de formação.

Maria, da Aldeia Nova Esperança

Uma vez iniciada, Putani queria escolher um caminho próprio para desenvolver, uma técnica sua. Ela se lembrou da organização Conselho Internacional das Treze Avós Nativas, formada em torno de mulheres que são referência em culturas tradicionais. Pensou em consultá-las. “Vi um documentário sobre as Treze Avós, mas elas estavam no Canadá, e eu não poderia ir ao seu encontro. Um dia tive uma visão que me aconselhou a construir um trabalho próprio. Escolhi então duas técnicas antigas dos yawanawás que não estavam mais sendo usadas: o banho de argila e o banho de ervas. ‘Faz essa cura e leva para a Aldeia Sagrada’, me disse a visão. Por isso estamos voltando para cá.”

Desde então, ela diz fazer rituais usando essas técnicas: “É a cultura tradicional que vivemos. Porque, se você vive como seus ancestrais, a cultura nunca acaba”, diz.

Putani tinha 27 anos quando completou a formação de pajé, em 2005. Em 2006, ganhou o Prêmio Bertha Luz, concedido pelo Senado a mulheres que se destacam na luta por direitos femininos.

A história de sua irmã, Kátia Hushahu, é contada no documentário imersivo ”Awavena”, produzido em realidade virtual pela diretora australiana Lynette Wallworth. O filme estreou neste ano no festival Sundance e foi apresentado também no Fórum Econômico de Davos.

As pajés preencheram realmente o vazio que temiam: seu pai morreu em 2010, com 80 anos; Tatá morreu em dezembro de 2016, com 104 anos, e o também pajé Yawa Runi morreu em março deste ano, aos 106.

Etnia adota casamento entre primos cruzados

O sistema de parentesco adotado pelos yawanawás é chamado dravidiano, com casamentos entre primos cruzados: a pessoa se casa com os filhos da irmã do pai ou do irmão da mãe. Há casos de poligamia, cada vez mais raros, geralmente com um marido e uma ou mais irmãs (chamado sororato). O hábito determina que, após o casamento, o marido se mude para perto da casa da família da mulher (costume chamado de uxorilocalidade).

Bebês ganham nome escolhido pelo pai

Ao nascer, os bebês recebem um nome dado pelo pai e, às vezes, um outro, escolhido pela mãe. Ambos buscam repetir nomes de tios e tias da criança em homenagem aos parentes, por vezes já mortos. Assim, os nomes se repetem alternadamente a cada duas gerações. Hoje, os índios são registrados com um nome em português e, geralmente, os documentos oficiais incluem também o nome da etnia como se fosse o sobrenome.

Mito yawanawá explica a interdição do incesto

Os mitos servem para traduzir as grandes coisas -como a criação do mundo– e também as pequenas. O cacique Bira conta um cheio de moralidade para explicar que dois irmãos jamais podem namorar. “Um dia, uma menina reclamou à mãe que todas as noites alguém ia a sua cama no escuro para bulir e brincar com ela. A mãe recomendou à filha fazer uma tintura de jenipapo e passar no rosto todo para marcar o buliçoso. Então, no dia seguinte, o irmão da menina desapareceu. Quando o encontraram, ele estava pintado de jenipapo. Foi condenado à morte e teve a cabeça cortada. A cabeça rolou e correu em direção à mãe. Ali, no chão, a cabeça do índio pediu água. A mãe disse que não poderia ajudá-lo. O índio jurou então uma vingança: iria morar na Lua e, a partir daquele dia, a primeira relação de toda menina deveria ser com ele. As mulheres sangrariam sempre após essa primeira relação. Esse seria o sinal de que elas podiam namorar a partir daquele momento.”

Quem flerta com mulher grávida recebe castigo

Um rapaz aparece na casa do cacique Biraci reclamando de um terçol. Bira pergunta a ele: “O que você andou fazendo?”. Em seguida se volta aos demais e explica: “Quando um homem paquera uma mulher grávida, fica com terçol”.

Um rapaz aparece na casa do cacique Biraci reclamando de um terçol. Bira pergunta a ele: “O que você andou fazendo?”. Em seguida se volta aos demais e explica: “Quando um homem paquera uma mulher grávida, fica com terçol”.

Keyá aplica a chamada ‘vacina’ do sapo em Marcílio

Festa e ayahuasca atraem turistas de todo o mundo

“Você já tomou a medicina?” A pergunta é repetida pelo jovem yawanawá, enquanto distribui a beberagem entre dezenas de pessoas que participam de um ritual de ayahuasca.

Diante da mesa lotada de jarras com a infusão e copinhos para pequenas doses, o rapaz, com um cocar de penas de gavião-real, se posiciona como um padre diante do altar.

O público se senta em bancos que formam um círculo em torno de um grande espaço aberto onde há uma fogueira no meio, o terreiro. Nesse templo, a nave é um vasto céu de anil, em uma noite em que a lua cheia ilumina a aldeia Nova Esperança.

A todos os que respondem “não” , o jovem diz: “Fique sempre tranquilo”, e em seguida entrega um pequeno copo parcialmente cheio.

Chamada “uni” pelos yawanawás e “Daime” em cultos religiosos não indígenas, a poção ritual que das matas do Acre se espalhou pelo planeta pode provocar poderosos enjoos. Por isso, recomenda-se que neófitos provem com cautela e não tenham medo da viagem. “Tudo que vem passa”, explica o líder Bira.

Keyá (esq.), da aldeia Mutum, e Miró retiram secreção da rã-kambô, que é usada como remédio

Muitos grupos reivindicam a paternidade da bebida, feita da mistura do cipó mariri (ou caapi) com as folhas da planta chacrona. Ela é consumida por ao menos 72 grupos indígenas da Amazônia, mas não erra quem apontar os yawanawás como seus usuários tradicionais de maior visibilidade mundial.

Estudos revelaram a presença de ayahuasca em panelas encontradas em sítios arqueológicos de 5.000 anos. O nome revela seu uso por habitantes do antigo império inca, já que se trata de uma palavra quéchua, a língua dos incas: ”aya” significa espírito e ”huasca” quer dizer cipó.

Os yawanawás recebem anualmente milhares de turistas para festivais que celebram sua cultura e seus rituais, com ingressos entre US$ 2.000 (R$ 7.800) e US$ 5.000 (R$ 19.500), dependendo do tempo de estadia. Quando promovem festas, os hotéis de Cruzeiro do Sul ficam lotados, como os voos que ligam seu aeroporto aos grandes hubs internacionais do país.

Nesses festivais, pode-se encontrar gente de todos os cantos do planeta nos galpões construídos pelos índios para abrigar até 700 pessoas.

CANTORIA, INCENSO E FOGO AMPLIFICAM EFEITO INEBRIANTE DA BEBIDA

A cerimônia começa depois do jantar, em que se recomenda uma refeição leve. Por volta de 21h, as pessoas já estão sentadas no círculo em torno da fogueira. Quando o jovem de cocar se coloca à frente da mesa, logo se forma diante dele uma fila de cerca de 30 pessoas. Há mais índios do que convidados naquele encontro fora de temporada, no centro da aldeia Nova Esperança.

O primeiro efeito da ayahuasca é um certo enjoo. Algumas pessoas descrevem fortes ânsias de vômito logo após beber o “remédio”. Em seguida, é descrita uma sensação de alívio, em que a alma é tomada por visões. É a “miração”, termo do português popular que acabou consagrado pelos rituais religiosos associados ao Daime.

Tecnicamente, é uma alucinação, estado alterado da mente. A droga atua em centros ligados à visão. Durante essas visões, alguns dizem encontrar ancestrais, outros, que antecipam cenas de seu futuro. Há quem faça previsão de doenças e quem relate entender um conflito no futuro. Cada um tem sua própria miração.

A alteração da percepção fascina muitos e assusta outros. Não poucos sentem medo. É preciso ter calma para resistir às horas de “viagem”, que às vezes viram “bad trips”.

Logo depois que toda a fila toma a “medicina” começam os cantos, longos e repetitivos. Forma-se uma roda de dança no meio do espaço em que se desenvolve o ritual, do tamanho de uma quadra de vôlei.

As músicas, em ritmo repetitivo, funcionam como mantras. A harmonia, com apenas dois acordes, lembra a de outros hinos religiosos. O coro canta sempre em uníssono, reforçando a simplicidade.

Bira, Tênpu (ajoelhado), Tchanu e João queimam o Sepá, resina de uma árvore usada para defumação ou benção, em ritual na Aldeia Sagrada

A cantoria, a fogueira e o cheiro de incenso –que acendem em grandes tachos para expulsar os maus espíritos–, somados ao efeito da ayahuasca, resultam em um ambiente inebriante. É difícil avaliar o que provoca o estado alterado de consciência, tantos são os estímulos.

Depois de alguns minutos de cânticos, o jovem coordenador dos trabalhos se encaminha de volta à mesinha e serve nova rodada de ayahuasca. A adesão é quase total entre quem havia tomado uma primeira dose. Na terceira rodada, nem todos repetem. A adesão vai diminuindo. Depois das 23h ninguém mais busca a bebida e a mesinha é recolhida.

O efeito, no entanto, persiste. Muitas pessoas recebem passes do xamã(à época, fevereiro deste ano, Yawa Runi estava vivo), outras inalam rapé, e assim a comemoração vai até as 5h do dia seguinte.

Enquanto algumas pessoas dançam no centro do terreiro, o pajé cuida de outras, que se mantêm sentadas. Ele pergunta se há algo que as preocupa, um mal-estar, uma tristeza. Em seguida, faz orações e sopra sobre a pessoa a fumaça vinda da queima do incenso de breu branco, ou almecegueira, árvore aromática curativa. Os sopros são acompanhados de um som que se parece com ”ôsh”. O religioso percorre as costas, os ombros e a cabeça da pessoa. Ao terminar, passa ao próximo da fila, numa sequência demorada.

Entre os yawanawás, o consumo da ayahuasca é com frequência acompanhado da inalação de rapé. O pó cinza à base de tabaco é soprado pelo xamã para dentro do nariz da pessoa, que o recebe por meio de um instrumento em forma de “v”, de taquara, com cerca de 40 centímetros.

pajé tem em sua mão um pequeno recipiente com rapé. Ele coloca um pouco do pó em uma ponta do canudo e direciona a outra para uma das narinas da pessoa; respira fundo e de repente dá um sopro muito forte. O que recebe o pó leva as mãos à narina, enquanto mantém os olhos cerrados.

rapé irrita a mucosa do fundo das fossas nasais e ali é parcialmente absorvido; outro tanto desce para a boca, provocando um gosto amargo e o espessamento da saliva. O cuspe ganha uma cor acinzentada.

rapé é a mistura de tabaco seco com cinzas da casca de ”txunu” (pau-pereira). Tudo é peneirado e pilado, resultando em um pó leve.

“A maior parte de nossa formação espiritual depende dos sonhos, por isso nós precisamos sonhar. O rapé abre o sonho, nos faz sonhar e lembrar”, explica o líder Biraci.

O efeito é um despertar, espécie de compensação para o torpor que a viagem da ayahuasca provoca. É como se a mente ganhasse clareza, e o corpo, energia extra para interagir.

Outra medicina pela qual os yawanawás são conhecidos é a “vacina do sapo” contra doenças físicas ou espirituais, como dizem. Na verdade é usada uma rã voadora, chamada ”kambô” (Phyllomedusa bicolor).

É feita uma leve incisão na pele, no braço ou na perna, com a ponta de uma vareta levada ao fogo. Em seguida, se inocula no local a secreção da pele da rã.

O veneno tem composição complexa, com alguns elementos semelhantes aos de um derivado do ópio, que reduz a dor, e outros que dão taquicardia. A pessoa também vomita e tem forte sensação de calor.

Tradicionalmente, a vacina do sapo era usada para melhorar a performance do índio na caça. “O sapo traz sorte, alegria, deixa a pessoa mais atenta”, explica Bira. Usa-se também o veneno em caso de doenças, para purificação. “A pessoa vomita, põe todos os problemas para fora”, diz o líder yawanawá.

DAIME NÃO VICIA E AJUDA A TRATAR DEPENDÊNCIA QUÍMICA, DIZ MÉDICO

ayahuasca é um alucinógeno que não causa dependência, segundo Dartiu Xavier, 63, chefe do serviço de dependência química da Unifesp.

O psiquiatra, que foi consultor do Ministério da Saúde e da Justiça, integrou a comissão que discutiu a liberação da droga para cultos, entre o fim dos anos 1990 e início dos 2000.

O grupo, que reunia técnicos e religiosos, concluiu que “o uso ritualístico, com fundamentação religiosa, não pode ser proibido”, como explica Xavier. “A comissão ajudou a sedimentar o conceito que em seguida foi adotado também nos EUA, quando a ayahuasca chegou lá”, diz.

Para o especialista e pesquisador, a ayahuasca é um alucinógeno, do ponto de vista científico. “As pessoas têm usado a palavra ‘enteógeno’, mas ela só serve para tentar evitar o estigma associado à palavra ‘alucinógeno’”. Enteógeno é a tradução de um neologismo em inglês, derivado do grego, que remete à capacidade de induzir a pessoa à visão de deus.

Keyá durante o ritual Sepá

Para Xavier, o daime tem efeito semelhante ao da mescalina e do LSD. A mescalina, consumida nos EUA em ritos da Igreja Nativa Americana, é permitida nesse contexto: “Esse uso da mescalina é muito parecido com o da ayahuasca nos ritos do Daime”.

O departamento chefiado por Xavier na Unifesp foi, em parceria com a Universidade da Califórnia, o primeiro laboratório a estudar a ayahuasca. Chamou a atenção do professor e de seu departamento o fato de dependentes graves, como alcoólatras, relatarem o abandono do vício após a adoção de um rito religioso ligado ao daime.

Além de não causar dependência, o chá contribui, em muitos casos, para tratar a compulsão –“miraculosamente”, diz. “Não conseguimos concluir se isso se deve só ao efeito químico ou se é o rito, o fato de pertencer a uma comunidade acolhedora.”

FLORESTA É FARMÁCIA PARA TUDO

A futura Aldeia Sagrada, que deverá ser erguida no local onde aconteceu o primeiro contato entre yawanawás e seringueiros, é uma homenagem aos ancestrais ali enterrados e à floresta.

Além das moradias, está prevista a implantação de uma estrutura para cursos de cultura yawanawá. A construção vai seguir o estilo das malocas indígenas tradicionais, que eram compartilhadas por diversas famílias. “Nessas casas, todo mundo vive e come junto. Marido não bate em mulher, os filhos não passam fome”, diz o cacique Bira.

Em volta da futura aldeia, uma área de floresta com cerca de dez hectares foi usada para o cultivo de ervas medicinais usadas pela comunidade em ritos religiosos e de cura.

Bira conduz a reportagem a um passeio em que vai explicando os supostos poderes de cada uma daquelas espécies: “Você vê aquela planta com umas folhas grandes, que parecem uma bunda? Sabe quando você tem uma filha jovem, recém-casada, que não quer ficar em casa, que quando o marido sai para trabalhar ela também quer logo sair, ir ao vizinho e coisa e tal? Você pega uma folha grande daquelas, esquenta e faz ela sentar em cima. Logo ela acalma e fica mais caseira. O mesmo vale para o marido”.

Filipe (dir.) sopra rapé em Zezinho, na aldeia Matrinxã

À medida que caminha, o líder aponta a vegetação e ensina: “Aqui não é bom que as mulheres caminhem, está cheio de plantas cujo cheiro faz com que elas queiram namorar. Então, uma mulher que sinta esse cheiro, não importa se é casada ou não, ela vai querer transar com uma pessoa”.

Uma outra erva medicinal ajuda a mulher a engravidar: “Um advogado amigo nosso, do Rio de Janeiro, estava casado havia 12 anos. Eles queriam ter filhos, mas não conseguiam. Ele veio aqui e pediu para tomar o nosso remédio. Agora acabou de nascer o filho deles”.

Tem remédio para tudo, segundo Bira: ervas para bebês que choram muito, viagra natural e planta que causa o efeito contrário, outra que faz bem para epilepsia.

“Agora, você vê a responsabilidade de quem lida com esses poderes: se uma pessoa ambiciosa tem acesso a isso, o que será que ela pode querer fazer? É preciso guardar com rigor as coisas, e só dar acesso restrito a elas, para que só pessoas responsáveis e preparadas possam conhecer e usar”, afirma.

Os antigos yawanawás eram polígamos, uma prática que vem reduzindo, porque os casamentos com várias mulheres atribuem ao marido a multiplicação das obrigações; é preciso ter condições de sustentar a casa, os filhos e a mulher; se quiser ter duas mulheres, deve dar igual a ambas. E assim sucessivamente.

Bira conta um chiste didático, a história de um pajé mais velho, com várias mulheres. Quando alguém dizia que uma de suas mulheres estava flertando com outro homem, ele respondia: “Que bom, tem alguém me ajudando a cuidar da casa”. Se a pessoa insinuava que a mulher poderia engravidar, ele dizia: “Mas o filho será meu também”. Para um líder tribal, quanto mais filhos, maior é poder de influência e a acumulação de riquezas.

A riqueza das florestas traz também benefícios indiretos. Um deles é o de atrair peixes quando o rio sobe, no inverno amazônico. Nesse momento, as águas ultrapassam as margens, chegam ao chão da floresta e “puxam” as frutas caídas, chamando os peixes.

Os yawanawás têm uma explicação para isso. “Quando chega a hora da água subir, o espírito de um peixe vai até as frutas, come algumas e derruba outras. Nesse momento, ele sinaliza para o rio que chegou a hora da água subir.”

Árvore gigantesca é a sagrada ligação entre o céu e o chão

Por atingir até 70 metros de altura, a sumaúma (Ceiba pentandra) é, para os índios, a ligação entre chão e céu. E casa dos animais mais poderosos de cada plano: da sucuri, grande serpente do chão, que se esconde sob suas raízes; da onça, que dorme entre raízes e galhos mais baixos; do gavião-real, que habita sua copa. A árvore também sequestra pessoas. Na história dos índios, pai e filho dormiram perto de uma sumaúma. Quando o pai acordou, o filho tinha sido levado para o alto e ele ouviu sua voz: “Pai, pode ir embora, porque não há como subir ou descer daqui”. Devido a essa sacralidade, a sumaúma não pode ser usada em rituais.

Lainara, da Aldeia Nova Esperança, recebe pintura no rosto

Artesanato com miçanga importada faz sucesso

O artesanato dos índios yawanawás é marcado pela perfeição de seu acabamento. O fotógrafo Sebastião Salgado, que já visitou dezenas de culturas tribais em todos os cantos do planeta, destaca a beleza de sua arte plumária. Também os trabalhos com miçanga são referência entre os povos indígenas e têm destaque em lojas de grandes cidades brasileiras. As pequenas contas são muito usadas em peças de iluminação.

Outro elemento marcante, sempre explorado em artigos relacionados à moda e ao turismo, é a pintura corporal. Os índios produzem desenhos na pele usando urucum (vermelho) e jenipapo (preto); depois recobrem as pinturas com uma resina que as mantêm por mais tempo do que durariam apenas com a tintura natural.

Assim como a língua e a memória dos mitos e rituais, essas técnicas foram recuperadas ao longo das últimas décadas. Elas estavam restritas às pessoas mais velhas, que passaram a transmitir às novas gerações esses saberes tradicionais. Hoje, os cocares têm uso ritual e não fazem parte da vestimenta diária dos índios. Exatamente por isso são muito bem conservados.

Muitos adereços plumários dos líderes são feitos com penas de gavião-real, ave de rapina que, segundo a mitologia, deu origem a todos os índios de língua pano. Por isso as coroas de penas têm predominantemente as cores branca e cinza.

Lainara, da Aldeia Nova Esperança

Já as pulseiras e os colares de miçangas são multicoloridos. Embora pareçam abstratos aos olhos de não índios, os desenhos geométricos representam animais.

Há muito tempo as miçangas industrializadas substituíram as sementes e os dentes de animais que eram usados como matéria-prima. Elas são importadas da República Tcheca, onde a produção das contas de vidro está concentrada na pequena cidade de Jablonec.

O líder Biraci Nixiwaká visitou Jablonec no ano passado para conhecer melhor o produtor de algo que se arraigou profundamente na cultura dos yawanawás e de outras etnias brasileiras: “Fiquei admirado. Eles me disseram que os povos indígenas respondem por 70% das vendas”. No Brasil, até mesmo grupos de pouco contato com não índios usam miçangas importadas.

Os yawanawás consomem muitos quilos de contas de vidro por ano. Em 2016, o consumo foi de uma tonelada, para atender à demanda de uma parceria com uma loja de decoração de São Paulo.

Falando da mudança das matérias-primas tradicionais para as contas industrializadas, Biraci ri e diz: “É um sinal dos tempos: as coisas estão aqui, ao nosso alcance. A gente não pode recusar a modernidade”.

Aos 80 anos, pianista João Donato tocou na aldeia com coral local

Nascido em Rio Branco, o pianista João Donato decidiu ir a seu estado natal em 2013, pouco antes de fazer 80 anos, e visitou a aldeia Nova Esperança. O episódio está na memória da tribo. Com um teclado, ele acompanhou um coral de crianças que cantavam histórias dos yawanawás. Em seguida, tocou composições suas. No ano seguinte, em agosto, convidou o músico Shaneihu Yawanawá para tocar no Rio de Janeiro, no show de comemoração de seu 80º aniversário.

Projeto ‘Amazônia’ documenta a floresta e seus habitantes tradicionais

A expedição do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado às terras dos yawanawás, no Acre, faz parte de um grande projeto de documentação da floresta amazônica e de seus habitantes tradicionais.

O resultado desse trabalho – “Amazônia”– deverá ser apresentado em livro e exposições no Brasil e no exterior a partir de 2021.

A Folha acompanha algumas dessas expedições desde o ano passado. Antes da atual edição, dedicada à comunidade dos yawanawás, foram publicados cadernos especiais sobre os índios korubos (17.dez.2017), os ashaninkas (20.mai.2018) e os suruwahas (2.set.2018).

Mineiro de Aimorés, 74 anos, o fotógrafo é conhecido no mundo por seus trabalhos de documentação construídos ao longo de anos, como “Trabalhadores”, ”Êxodos” e “Gênesis”, entre outros.

Economista de formação radicado na França durante a ditadura militar, Salgado começou a carreira nos anos 1970. Trabalhou em algumas grandes agências de imagens, como a prestigiosa Magnum, que foi fundada em 1947 por Robert Capa e Henri Cartier-Bresson. Desde os anos 1990, ele mantém sua própria agência, a Amazonas Images, que tem sede em Paris.

Reconhecido como um dos principais talentos da fotografia internacional, o brasileiro acumula prêmios no currículo desde a década de 1980 e tem obras suas em coleções e museus de todo o mundo.

Desde dezembro de 2017, Salgado ocupa uma cadeira na Academia Francesa de Belas Artes, maior reconhecimento do governo e da comunidade artística francesa a um criador que atue no país. É o primeiro brasileiro a ocupar essa posição no Institut de France, que reúne as cinco grandes academias francesas.

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