Feminicídio
Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Comumente, os termos feminicídio e ”’femicídio”’ são usados como sinônimos para a morte de mulheres em razão de seu sexo. No entanto, há uma grande discussão, tanto teórica quanto de ativistas de movimentos de mulheres e movimentos feministas, quanto a utilização indiscriminada do termo.
Há autores/autoras que se baseiam na terminologia usada por Jill Radford e Diana Russel, em “Femicide: The Politics of Woman Killing”, de 1992. 1 Marcela Lagarde, antropóloga e feminista mexicana, utiliza a categoria feminicídio, que significa assassinato de mulheres (termo homólogo ao homicídio), mas acrescentando a ele uma significação política: a de genocídio contra as mulheres. 2
Feminicídio é algo que vai além da misoginia, criando um clima de terror que gera a perseguição e morte da mulher a partir de agressões físicas e psicológicas dos mais variados tipos, como abuso físico e verbal, estupro, tortura, escravidão sexual, espancamentos, assédio sexual, mutilação genital e cirurgias ginecológicas desnecessárias, proibição do aborto e da contracepção, cirurgias cosméticas, negação da alimentação, maternidade, heterossexualidade e esterilização forçadas. Constitui uma categoria sociológica claramente distinguível e que tem adquirido especificidade normativa a partir da Convenção de Belém do Pará, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, adotada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 09 de junho de 1994 e ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995.
Segundo Rita Laura Segato, a tentativa de Marcela Lagarde de separar as duas definições não foi efetiva, tendo em vista que os dois termos são usados indistintamente nos trabalhos sobre o tema. De maneira política, as duas categorias, femicídio e feminicídio, têm sido utilizadas para descrever e denunciar mortes de mulheres em diferentes contextos sociais e políticos. 3 Há autores que consideram “feminicídio” como uma variante de “femicídio”, tendo em vista que a definição inicial é bastante abrangente.
Características do femicídio ou feminicídio
– São mortes intencionais e violentas de mulheres em decorrência de seu sexo;
– Não são eventos isolados na vida das mulheres, porque são resultado das diferenças de poder entre homens e mulheres nos diferentes contextos socioeconômicos em que se apresentam e, ao mesmo tempo, condição para a manutenção dessas diferenças.
Para a qualificação de femicídios é necessária a superação de duas dificuldades: a distinção entre os femicídios e os crimes passionais e a demonstração de que as mortes de mulheres são diferentes das mortes que decorrem da criminalidade comum, em particular das mortes provocadas por gangues e quadrilhas.
Uma das grandes dificuldades para se qualificar os crimes de gênero é a falta de dados oficiais que permita se conhecer o número de mortes de mulheres e os contextos em que elas ocorrem. Outra dificuldade é a ausência da figura jurídica “femicídio” na grande maioria dos países, inclusive no Brasil. 4
Femicídios ou feminicídios devem ser distinguidos dos crimes de gênero que são praticados contra a mulher em ambientes privados, por abusadores conhecidos de suas vítimas. A exploração das causas e dos contextos em que são cometidos esses crimes e a identificação das relações de poder que levam ao seu acontecimento.
Tipos de feminicídio
Femicídio íntimo: aqueles crimes cometidos por homens com os quais a vítima tem ou teve uma relação íntima, familiar, de convivência ou afins. Incluem os crimes cometidos por parceiros sexuais ou homens com quem tiveram outras relações interpessoais tais como maridos, companheiros, namorados, sejam em relações atuais ou passadas; •
Femicídio não íntimo: são aqueles cometidos por homens com os quais a vítima não tinha relações íntimas, familiares ou de convivência, mas com os quais havia uma relação de confiança, hierarquia ou amizade, tais como amigos ou colegas de trabalho, trabalhadores da saúde, empregadores. Os crimes classificados nesse grupo podem ser desagregados em dois subgrupos, segundo tenha ocorrido a prática de violência sexual ou não. 4
Femicídios por conexão: são aqueles em que as mulheres foram assassinadas porque se encontravam na “linha de fogo” de um homem que tentava matar outra mulher, ou seja, são casos em que as mulheres adultas ou meninas tentam intervir para impedir a prática de um crime contra outra mulher e acabam morrendo. Independem do tipo de vínculo entre a vítima e o agressor, que podem inclusive ser desconhecidos. 4
História
A expressão femicídio – ou femicide como formulada originalmente em inglês – é atribuída a Diana Russel, que a teria utilizado pela primeira vez em 1976, durante um depoimento perante o Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, em Bruxelas. Posteriormente, Diana Russel e Jill Radford escreveram o livro ”Femicide: the politics of woman killing” que se tornou uma das principais referências para os estudiosos do tema. 1
A categoria “femicídio” ou “feminicídio” ganhou espaço no debate latino-americano a partir das denúncias de assassinatos de mulheres em Ciudad Juarez – México, onde, desde o início dos anos 1990, práticas de violência sexual, tortura, desaparecimentos e assassinatos de mulheres têm se repetido em um contexto de omissão do Estado e consequente impunidade para os criminosos, conforme denúncia de ativistas políticas. 4
Em relação à bibliografia disponível sobre a temática do feminicídio, grande parte do material é composta de relatórios feitos por ONGs feministas e agências internacionais de defesa dos direitos humanos, como a Anistia Internacional, e outras. São trabalhos cujo objetivo é dar visibilidade a essas mortes e cobrar dos Estados o cumprimento dos deveres assumidos na assinatura e ratificação de convenções e tratados internacionais para a defesa dos direitos das mulheres. Na América Latina, as duas principais convenções são a Convenção de Belém do Pará (OEA, 1994) e a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW, 1979).
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O enfrentamento à violência de gênero praticada contra as mulheres tem se ampliado desde 1985 quando foi criada a primeira Delegacia de Defesa da Mulher em São Paulo, resultado de um ciclo de 10 anos de luta feminista e social. Essa violência havia se tornado mais evidente desde o assassinato de Ângela Diniz por seu parceiro Doca Street, no réveillon de 1976, acontecimento que, envolvendo personagens da alta sociedade carioca, desvelou a prática de agressões e de assassinatos de mulheres por parceiros como uma questão presente em todas as classes sociais. Desde então os movimentos de mulheres e feministas têm atuado na pressão e no acompanhamento à implementação de políticas públicas voltadas para a prevenção, o combate e a punição da violência sexista contra as mulheres. Segundo a Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República, em 2008 existiam no país 418 delegacias especializadas para o atendimento a mulheres, 216 conselhos estaduais e municipais da mulher, cerca de 234 órgãos governamentais e 229 não governamentais de atendimento às mulheres. Com a criação e implementação da Lei Maria da Penha, de combate e prevenção à violência doméstica contra as mulheres, em setembro de 2006, aumentaram os equipamentos, projetos e ações voltados para a defesa e garantia dos direitos das mulheres. Assim, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo ampliaram-se os esforços para o combate e a prevenção da violência contra mulheres, consolidando os seus direitos humanos e formando uma nova consciência social sobre os papeis e significados de ser homem e ser mulher.
No entanto, na medida em que ocorrem esses avanços, tornam-se mais visíveis os mecanismos de dominação e violação dos direitos das mulheres, passíveis de novas formas de sujeição de gênero. É nesse âmbito que nos deparamos com o aumento das denúncias dos assassinatos de mulheres que em vários lugares do mundo estão sendo denominados ‘feminicídio’; um conceito ainda em construção, introduzido na teoria feminista por Diana Russel e Jane Caputi no artigo “Femicide: Speaking the Unspeakable”, publicado em 1990 e depois no livro “Femicide: The politcs of women killing”, de Diana Russell e Jill Radford, em 1992(1). O eixo da discussão que as autoras estabelecem é a natureza dos assassinatos das mulheres por homens, sobretudo, seus parceiros amorosos(2).
A morte de mulheres emerge como resultado da cultura patriarcal, que normaliza e reforça atitudes de controle e de violação das mulheres por parte dos homens, estabelecendo a engrenagem social para a prática de violências contra as mulheres, pelo fato de serem mulheres; chegando até a sua forma mais bárbara no feminicídio. Para Russel e Caputi (1990) o feminicidio “é o extremo de um continuum de terror antifeminino, e inclui uma ampla variedade de abusos verbais e físicos… Sempre que estas formas de terrorismo resultam em morte, elas se transformam em feminicidio”. Segundo Segato (2006), a intenção das autoras é “desmascarar o patriarcado como uma instituição que sustenta o controle do corpo e a capacidade punitiva sobre as mulheres e mostrar a dimensão política de todos os assassinatos de mulheres que resultam desse controle e capacidade punitiva, sem exceção”.
As questões introduzidas pelas ideias das autoras referidas -Russel, Caputi, Segato- deslocam o entendimento dos assassinatos passionais de mulheres do âmbito da tragédia e do descontrole de homens imersos em paixões descontroladas, para o âmbito da cultura patriarcal, cujos valores e práticas colocam os homens em posição de posse e controle do corpo (e da vontade) feminino; atribuindo-lhes capacidade (e legitimidade) punitiva para as situações em que as mulheres reagem, ou se opõem a esse controle. Segato introduz em seu texto a discussão sobre qual dos crimes contra mulheres podem ser considerados feminicídios de modo a distinguir os crimes de gênero daqueles decorrentes de outras formas de criminalidade. Argumenta a favor do uso da categoria feminicídio retirando os crimes contra mulheres da categoria de homicídios, de modo a demarcar, frente aos meios de comunicação e a toda a sociedade, os crimes do patriarcado contra as mulheres.
Assim, a força política da categoria feminicídio se evidencia por sua capacidade de ampliar o entendimento sobre os assassinatos de mulheres que decorrem dos padrões sociais e dos traços simbólicos que legitimam a dominação masculina. Torna possível compreender os mecanismos sociais e simbólicos que constroem esses crimes, revelando-os como engendrados, decorrentes de relações de gênero, patriarcais, revelando-os como crimes culturais contra as mulheres, um crime político.
Notas:
(1) SEGATO, 2006.
(2) O artigo “Feminicide” de Diana Russel e Jane Caputi está disponível no endereço da internet: http://www.dianarussell.com/femicide.html
(obs: esta pag. não se encontra mais, porém veja em: http://www.dianarussell.com/articles.html)
Referências bibliográficas
CENTRO de la Mujer Peruana Flora Tristan. La violencia contra la mujer: feminicidio en el Perú. 2005.
RUSSELL, Diana e CAPUTI, Jane. Feminicide. Disponível em: http://www.dianarussell.com/femicide.html
SEGATO. Rita Laura. ¿Qué es un feminicidio? Notas para un debate emergente. Série Antropologia nº 401, UNB, Brasília, 2006.